Decantando Ideias #16: o décimo homem e a dissidência que salva
Nem sempre a lucidez está com a maioria. Este é um brinde à dúvida que salva — e ao tempo que as ideias precisam para respirar.
Sirva-se de uma taça...
E pense: em tempos de verdades instantâneas, quem ainda ousa amadurecer uma dúvida?
Vivemos dias de respostas rápidas e convicções prontas. O consenso virou protocolo de eficiência. A agilidade, um fetiche da gestão. E o silêncio do dissenso — antes sinal de cautela — tornou-se cortesia institucional. Mas será que estamos servindo ideias cruas demais, sem deixá-las respirar?
No aroma do acordo apressado talvez se esconda o mofo da omissão. Nesta edição de Decantando Ideias, convido você a explorar o papel quase filosófico do “décimo homem” — essa figura simbólica que nos recorda que a dúvida, quando nasce do cuidado, pode ser mais nobre que a certeza.
Inspirado por uma prática não confirmada da inteligência israelense — e popularizado pelo filme Guerra Mundial Z — o conceito parte de um princípio intrigante: se nove pessoas em uma sala concordam com uma decisão, a décima tem o dever de discordar. Não por birra, mas por método. Sua função é tensionar o consenso, simular o impensável, defender o que ninguém está disposto a ouvir.
A lucidez do isolado
O “décimo homem” é menos um título e mais uma metáfora. Um gesto ético diante da embriaguez coletiva. Ele não discorda por capricho, nem por vaidade. Ele resiste porque sabe que há algo mais perigoso do que errar: errar juntos, e em paz.
Ele é, no fundo, o herdeiro moderno da tradição socrática — aquele que, no meio da ágora digital, ainda pergunta “e se...?”, mesmo sob o risco do ridículo. Ele é o anjo melancólico descrito por Walter Benjamin, que contempla os escombros do progresso com olhos de espanto enquanto todos ao redor celebram a marcha para frente.
Numa época em que a velocidade da decisão virou sinônimo de competência, o décimo homem nos obriga a pausar. A desacelerar. A contemplar o impensável — como quem gira a taça antes de sorver, respeitando o tempo e o mistério do que ainda está em formação.
Quando o vinho não respirou
Há vinhos que, ao serem servidos cedo demais, traem sua promessa. Perdem corpo, abafam o aroma, revelam uma acidez desequilibrada. O mesmo acontece com decisões que não amadurecem. A estrutura estratégica desaba, a narrativa colapsa.
No silêncio da divergência reprimida, nascem os grandes fiascos. Das trincheiras diplomáticas às salas de conselhos. O Titanic não afundou por falta de tecnologia, mas por excesso de confiança. A crise do subprime não explodiu por ignorância — e sim por conformismo lucrativo. E em muitas empresas, o “nós já decidimos” é a nova forma de interditar o pensamento.
Quantas vezes, em nossas decisões organizacionais, já brindamos soluções mal decantadas apenas porque todos pareciam concordar?
O décimo homem como arquétipo da dissidência ética
Mesmo que a política do “décimo homem” nunca tenha sido formalizada em Israel, ela carrega um poder simbólico que ultrapassa fronteiras e departamentos. É uma filosofia de escuta, de humildade institucionalizada. Uma lembrança de que a unanimidade pode ser um sintoma — e não uma virtude.
Na prática, ele pode ser um ritual. Uma cadeira a mais na sala. Um revisor de premissas. Um papel rotativo. Mas, acima de tudo, é uma cultura: a permissão para o “não”, para o desconforto, para a complexidade.
No método STRONG — que idealizei para dar estrutura a decisões com alma — esse papel é essencial.
Na fase de Direcionadores Estratégicos, incluímos o tensionamento deliberado do óbvio, o cultivo de hipóteses alternativas, o estímulo ao dissenso lúcido. Porque não se trata apenas de evitar o erro — mas de ampliar a visão. Como quem inspira fundo antes de provar, à espera do equilíbrio entre aroma, estrutura e tempo.
Entre certezas cegas e dúvidas com alma
Albert Camus dizia que o verdadeiro filósofo é aquele capaz de sustentar o absurdo sem desespero. O décimo homem é esse filósofo discreto: aquele que sustenta a dúvida com dignidade. Que olha para a unanimidade e pergunta — com delicadeza, mas firmeza — “e se todos estivermos errados?”
Esse papel não é confortável. É, muitas vezes, ingrato. Mas é também essencial. Porque toda organização precisa de um ponto de fricção lúcida. Um lugar onde o aroma dominante possa ser confrontado, não por hostilidade, mas por zelo.
E se há um traço comum entre vinhos bem estruturados e estratégias resilientes, talvez seja este: ambos precisam de tempo, acidez e provocação para revelar sua melhor versão.
Enquanto a última gota escorre pela taça... lembre-se: o dissenso, quando nasce do cuidado, é uma forma de amor estratégico — e de respeito à complexidade do real.
Alexandre de Salles